Tânia Maria in Copenhagen, Tânia Maria & Niels-Henning Ørsted (2005)
- Marcos Ramos
- 4 days ago
- 8 min read
Em 2025, duas datas se entrelaçam numa mesma efeméride. Completam-se vinte anos tanto da morte de Niels-Henning Ørsted Pedersen quanto do relançamento de um álbum gravado por ele ao lado de Tânia Maria em 1979. Naquele momento, Tânia tinha 31 anos e vivia um período de expansão internacional da carreira; NHØP, com apenas 33, já era reconhecido como um dos maiores contrabaixistas de sua geração. Mais que homenagem póstuma, o disco — fruto de uma sessão de estúdio no auge criativo de ambos — preserva, como cápsula do tempo, o diálogo improvável entre a energia rítmica da pianista, compositora e cantora brasileira e a elegância e inventividade técnica do dinamarquês. Esta crítica tardia propõe uma escuta aberta e paciente dessa colaboração extraordinária, partindo da premissa de que certos encontros não envelhecem, eles maturam.
Parte 1. Tânia Maria
Durante os anos 1950 e 1960, a música popular brasileira passava por transformações decisivas. A bossa nova introduzia novas harmonias e modos de cantar, o samba se adensava em diálogos com o jazz e com a canção urbana, e surgiam formas musicais que de modo radical desafiavam fronteiras entre o popular e o erudito. A escuta ganhava complexidade — e com ela, também, a prática musical se tornava mais aberta à invenção. Foi nesse ambiente em transição que Tânia Maria começou a desenvolver sua música.
Tania Maria nasceu em São Luís do Maranhão, em 1948, e iniciou os estudos de piano ainda na infância. A mudança para o Rio de Janeiro representou um ponto de inflexão em sua trajetória, aprofundando sua formação e abrindo as portas do circuito profissional. Em 1966, aos 18 anos, lançou o disco de estreia, Apresentamos (Continental). Seguiram-se outras gravações no Brasil, até que, poucos anos depois, partiu para a Europa só com a passagem de ida. Em meados da década de 1970, estabeleceu-se na França, onde estabeleceria sua carreira.
Paris, neste momento, era um caldeirão fumegante de experimentação musical. A capital francesa, recém-sacudida pelas revoltas de maio de 68, havia se transformado em santuário para músicos exilados, laboratório do free jazz e vitrine internacional para novas fusões. De um lado, os ecos das barricadas de 1968 ainda ressoavam nos porões, nas gravadoras e nos clubes noturnos. De outro, uma elite musical negra norte-americana, fugindo do racismo institucionalizado nos EUA, encontrava abrigo, dignidade e palco na França. Músicos como Archie Shepp, Don Cherry, Anthony Braxton e o Art Ensemble of Chicago aterrissaram em Paris entre 1969 e 1972 e não apenas tocaram: gravaram, criaram e revolucionaram.
Boa parte dessa revolução sonora foi registrada pela icônica BYG Records, especialmente pela sua série Actuel — um acervo histórico de LPs que documentaram uma maratona de gravações no Studio Davout, impulsionada pelo clima de urgência e liberdade que tomou conta da cidade após o Festival Pan-Africano de Argel. Era o "verão quente" de 1969, e Paris fervilhava. O solo estava fértil, clubes como o Le Caveau de la Huchette e o Club Saint-Germain funcionavam como verdadeiros centros de encontro entre veteranos do jazz americano — Dexter Gordon, Bud Powell, Chet Baker — e a juventude. A cena era cosmopolita. Havia espaço para o jazz, mas também para o rock psicodélico, a canção de vanguarda, a música experimental, e, claro, para a música brasileira.
Paris oferecia o que o Brasil da época não conseguia: respeito à música como arte, atenção à performance como invenção, investimento em artistas que não se encaixavam em moldes comerciais. E foi nesse território de experimentação que Tânia Maria encontrou seu lugar. Nesse cenário, depois de gravar uma sequência de álbuns, ela assinou contrato com a Concord Records e, em 1980, lançou Piquant, trabalho importante na consilidação da sua carreira internacional e que lhe rendeu o prêmio “Golden Leonard Feather Award”.
Ao lado de nomes como Flora Purim, Airto Moreira e Hermeto Pascoal, Tânia ajudou a consolidar um capítulo fundamental da presença brasileira nas vanguardas musicais internacionais. No entanto, o alcance e as reverberações dessa inserção ainda permanecem pouco explorados pela pesquisa acadêmica. Falta compreender de que maneira essa circulação internacional moldou não apenas a trajetória individual desses artistas, mas também a percepção global da música brasileira como campo de inovação e experimentação. Examinar com mais atenção esses trânsitos — suas redes de colaboração, estratégias de produção e recepção crítica — é tarefa urgente para quem deseja entender o papel do Brasil na história cultural do século XX para além dos clichês exportáveis.
Quando Tânia Maria chegou a Copenhague no fim dos anos 1970, sua conexão com a Dinamarca já vinha de apresentações anteriores no país, fruto das primeiras excursões europeias que a levaram por diferentes palcos dinamarqueses. Essa relação ganhou novo peso em 1º de novembro de 1978, quando se apresentou no lendário Jazzhus Montmartre ao lado de André Ceccarelli (bateria) e Marc Betreaux (baixo). O concerto, gravado ao vivo, captou a artista em plena combustão criativa. O registro não apenas consolidou seu público na Dinamarca como preparou o terreno para um retorno mais ambicioso. Menos de um ano depois, em setembro de 1979, ela voltaria para registrar, no Sweet Silence Studios, o encontro histórico com o baixista Niels-Henning Ørsted Pedersen.

Parte 2. O encontro com Niels-Henning Ørsted Pedersen
Para compreender a significância do encontro entre Tânia Maria e Niels-Henning Ørsted Pedersen, é fundamental situar Copenhagen no mapa mundial do jazz dos anos 1970. A capital dinamarquesa havia se estabelecido como um dos principais centros do jazz europeu, rivalizando com Paris e Londres em termos de importância cultural e artística. O epicentro desta efervescência era o Jazzhus Montmartre, clube fundado em 1959 que rapidamente se tornou um dos destinos obrigatórios para músicos de jazz de todo o mundo.
O Montmartre, localizado na Store Regnegade 19a, não era apenas um clube de jazz, mas um verdadeiro laboratório de experimentação musical. Sob a liderança de Herluf Kamp-Larsen a partir de 1961, o estabelecimento desenvolveu uma atmosfera única que combinava intimidade física - com capacidade para apenas 85 pessoas - e grandeza artística. A famosa parede de máscaras criada pelo artista Mogens Gylling tornou-se um símbolo visual desta fusão entre arte e música que caracterizava o local.
O que tornava Copenhagen particularmente atrativa para músicos internacionais, especialmente americanos, era a combinação de sofisticação cultural e receptividade social. Em uma época em que os Estados Unidos ainda enfrentavam tensões raciais significativas, Copenhagen oferecia um ambiente mais acolhedor para artistas negros. Esta atmosfera de abertura cultural atraiu nomes como Ben Webster, Dexter Gordon, Stan Getz e Kenny Drew, que não apenas se apresentavam regularmente no Montmartre, mas estabeleceram residência na cidade.
Quando Tania Maria chegou a Copenhague, encontrou em Niels-Henning Ørsted Pedersen (NHØP) um parceiro musical de calibre excepcional. O contrabaixista dinamarquês já era amplamente reconhecido como um dos nomes mais respeitados do jazz internacional. Sua técnica singular — marcada, por exemplo, pelo uso de três dedos da mão direita no pizzicato — ampliou de forma decisiva as possibilidades expressivas do contrabaixo no gênero, estabelecendo um novo padrão de virtuosismo e fluidez melódica. (Veja no vídeo a seguir, no minuto 2’12”, um exemplo). O que sobretudo distinguia NHØP de outros contrabaixistas era sua capacidade de funcionar simultaneamente como base rítmica e como solista melódico. Sua abordagem instrumental, influenciada pelo trabalho pioneiro de Scott LaFaro, expandia as fronteiras tradicionais do contrabaixo, transformando-o em um instrumento de amplas possibilidades expressivas.
A escolha do formato de duo — apenas piano/voz e contrabaixo — foi uma decisão artística ousada, que expôs cada detalhe da interação entre os dois. Sem a mediação de outros instrumentos, cada inflexão rítmica, nuance de fraseado e variação harmônica ganhava peso ampliado, exigindo um grau de escuta e precisão pouco comum. NHØP, acostumado a formações reduzidas ao longo da carreira, encontrava nesse modelo um terreno natural; para Tânia, habituada a liderar grupos maiores, a experiência representou uma rara imersão em um diálogo musical condensado, em que a energia e a inventividade se concentravam na troca direta com o parceiro.

A seleção de repertório para o álbum revela uma curadoria que apostava na novidade, mas também dialogava com diferentes tradições da música brasileira. O disco abre com Bim Bom, clássico de João Gilberto cuja simplicidade lírica — “é só isso o meu baião, e não tem mais nada não” — oferece um campo vasto para a improvisação vocal e instrumental. A leveza do tema abre espaço para expansões criativas, e tudo indica que a gravação original se estendia muito mais, já que a faixa termina com um fade out — provavelmente uma solução do produtor Poul Bruun para ajustar a duração, cortando o que deve ter sido uma longa sessão de improvisos.
Em seguida, Baião Improvisado, como o nome sugere, entrega o comando ao improviso. É uma peça sem letra. Aqui ouvimos uma técnica que Tânia Maria repetiria e aperfeiçoaria ao longo da carreira: improvisar ao piano enquanto assobia, dobrando a melodia e criando uma textura particular. Casinha Pequenina, a faixa mais lenta do álbum, rompe a energia predominante para mergulhar numa melodia nostálgica — um elemento menos lembrado, mas igualmente presente, na obra de Tânia Maria. NHØP inicia tocando com arco, acentuando o lirismo das frases. Com mais de sete minutos, a faixa dedica a primeira metade à exposição da canção e de sua letra; a partir do meio, a improvisação assume o centro, antes do retorno ao tema final — dessa vez sem letra —, com piano, voz e o contrabaixo novamente com arco.
O lado A se encerra com Rapaz de Bem, de Johnny Alf, em interpretação singular desde a introdução. A escolha ressalta a importância de Alf como matriz criativa do samba pré-bossa nova, muitas vezes obnubilada pelos mecanismos de apagamento que conhecemos muito bem. A leitura de Tânia incorpora recursos que se tornariam característicos em sua trajetória: improvisações faladas, canto comentado, inflexões prosódicas que se confundem com o scat, criando uma ponte entre fala e canto.
O lado B abre com Quero Não, iniciada por um scat que conduz à letra curta, socialmente situada: uma recusa da miséria e um elogio ao canto, à música e à arte. A concisão verbal contrasta com a generosidade dos espaços para improvisação, que sustentam a energia da faixa. Em seguida, Refrão Popular apresenta-se como um samba-canção com ares de bolero, cujo eu-lírico busca uma relação amorosa serena, marcada pela tranquilidade. É a letra mais desenvolvida do álbum, e a estrutura espelha a de Casinha Pequenina: metade da faixa voltada à canção, metade entregue ao instrumental e ao improviso.
A última faixa, Chorinho do Marquinho, começa com um fade in, sugerindo — pelo tempo total, próximo de oito minutos — que seja um recorte de uma longa sessão de improvisação. É um terreno fértil para Tânia exibir sua marca registrada, dobrar ao scat as melodias executadas ao piano, fundindo percussão, harmonia e canto num gesto único.
Todas as faixas são composições brasileiras, e quando cantadas, são cantadas em português, como Tania Maria fez ao longo de toda a sua carreira internacional. Aqui, porém, mais do que afirmar um cânone ou apresentar um inventário representativo, as canções funcionam como plataformas para o exercício criativo — de forma análoga ao papel que os standards da canção popular americana tiveram no jazz. A maior parte das canções não está presente apenas pelo peso histórico ou llírico das letras, mas pela maleabilidade que oferecem à reinvenção. Essa lógica explica, em parte, as durações generosas e o caráter expansivo das interpretações.
Gravado em setembro de 1979, Tania Maria in Copenhagen foi lançado ainda naquele ano pela gravadora dinamarquesa Stunt Records, circulando principalmente no mercado europeu. Décadas depois, em 2005, o álbum foi remasterizado e relançado, reapresentando ao público um registro que havia se tornado raro. Esse retorno aconteceu em um cenário musical muito diferente do das gravações originais: a world music já se firmara como categoria comercial, a música brasileira desfrutava de um reconhecimento global mais consolidado e o jazz se mostrava cada vez mais receptivo a influências não americanas. Nesse novo contexto, o disco pôde ser ouvido não apenas como registro histórico de um encontro singular, mas como obra de espírito pioneiro, capaz de antecipar diálogos estéticos que, décadas depois, se tornariam parte do vocabulário corrente das vanguardas musicais internacionais.
Comments