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Os Guardiões da Magia, by João Luiz (2025)

  • Foto do escritor: Marcos Ramos
    Marcos Ramos
  • 31 de jul.
  • 10 min de leitura

Atualizado: há 4 dias



A obra do compositor cubano Leo Brouwer ocupa um lugar singular na história do violão moderno. É difícil pensar o repertório do instrumento sem atravessar, em algum momento, o seu trabalho. Ao longo de mais de sessenta anos de atividade, Brouwer construiu uma linguagem que articula rigor estrutural, experimentação harmônica e um universo referencial que cruza a tradição afro-caribenha, a vanguarda europeia e a canção popular latino-americana. Mas não se trata apenas de um repertório marcado pela fusão de influências. Há em Brouwer uma ética da construção. Sua escrita para violão é idiomática não porque se ajusta ao instrumento, mas porque o reinventa de dentro, faz do violão não apenas uma superfície sonora, mas um campo de pensamento. O disco de João Luiz, Os Guardiões da Magia (2025) recentemente lançado pela gravadora Rocinante, evidencia precisamente esse momento maduro da trajetória de Brouwer, no qual a sofisticação harmônica e a clareza formal se reforçam. Este segundo ensaio crítico publicado no Tomando Nota se volta a este trabalho, acompanhando, com escuta atenta, as singularidades da interpretação proposta por um dos intérpretes mais atentos do compositor cubano.


 


Parte 1. Leo Brouwer


A música corre nas veias de Leo Brouwer de forma quase literal. Ele é neto de Ernestina Lecuona de Brouwer, compositora e pianista cubana, e sobrinho-neto do lendário Ernesto Lecuona, um dos maiores nomes da música cubana de todos os tempos. Mas Leo Brouwer não se contentou em viver à sombra dessa herança ilustre. Aos 13 anos, quando pegou um violão pela primeira vez, atraído pelo som do flamenco, ele começou uma jornada que o levaria muito além das fronteiras musicais de sua família. A trajetória de Brouwer como violonista começou com Isaac Nicola, seu primeiro professor, que fazia parte de uma linhagem pedagógica impressionante. Nicola havia estudado com Emilio Pujol, que por sua vez foi aluno do grande Francisco Tárrega, considerado o pai do violão clássico moderno.


Aos 17 anos, Brouwer já fazia seu primeiro recital público. Nos anos 1960, partiu para os Estados Unidos para estudar na Juilliard School, em Nova York, onde aprofundou seus conhecimentos de composição com o vanguardista Stefan Wolpe. Essa experiência internacional foi fundamental na construção da sua visão musical, que combinaria as raízes cubanas com as técnicas mais avançadas da música contemporânea. Didaticamente, divide-se a obra de Leo Brouwer em três grandes períodos, cada um representando uma evolução natural de seu pensamento musical. Nos primeiros anos de sua carreira, Brouwer criou obras que já mostravam sua genialidade precoce. Peças como os primeiros Estudios Simples e Elogio de la Danza revelavam um compositor que entendia profundamente o violão, escrevendo música que parecia ter nascido do próprio instrumento. Essas obras combinavam a tradição clássica com elementos da música popular cubana de forma tão natural que pareciam inevitáveis. Influenciado por sua experiência internacional e pelo contato com a vanguarda musical europeia, em um segundo momento, Brouwer passou a explorar territórios sonoros completamente novos. Obras como Canticum, Tarantos e La Espiral Eterna introduziram técnicas estendidas no violão, sons percussivos e uma linguagem harmônica em alguma medida iconoclasta.


Leo Brouwer. Foto de Danay Nápoles
Leo Brouwer. Foto de Danay Nápoles

A partir dos anos 1980, com obras como El Decamerón Negro, Brouwer encontrou sua voz definitiva: uma síntese extraordinária entre simplicidade e sofisticação. Nesta fase, ele demonstra uma liberdade criativa total, incorporando influências que vão de Bach aos Beatles, do compositor japonês Takemitsu ao nosso Egberto Gismonti. Brouwer compôs ao menos onze concertos para violão e orquestra — um número impressionante, ainda mais se considerarmos que o violão, historicamente, sempre ocupou um espaço periférico no repertório sinfônico. Cada concerto tem fisionomia própria, dedicado a grandes violonistas da atualidade e escrito com escuta sensível às suas singularidades técnicas. Sua produção para violão solo é igualmente notável: sete sonatas que desdobram diferentes aspectos da linguagem do instrumento e os célebres Estudios Simples, vinte peças reunidas em quatro volumes que se tornaram parte obrigatória da formação de qualquer violonista sério — estudos que conciliam, com raro equilíbrio, exigência técnica e beleza musical. Esse percurso não passou despercebido.


Brouwer é hoje um dos compositores latino-americanos mais reconhecidos no cenário internacional. Recebeu dois prêmios Grammy Latinos (2010 e 2017), o Prêmio Iberoamericano de la Música Tomás Luis de Victoria (2010), foi nomeado Commandeur des Arts et Lettres pelo governo francês (2018) e tornou-se membro honorário da American Academy of Arts and Letters. É também doutor honoris causa por universidades em Cuba e no Chile, além de membro de academias de arte em diversos países. Curiosamente, o Brasil se tornou um dos países onde a música de Leo Brouwer encontrou terreno mais fértil. Violonistas brasileiros como Turibio Santos, Carlos Barbosa-Lima, Fabio Zanon, os irmãos Assad e o Brasil Guitar Duo não apenas interpretaram suas obras com maestria, mas também estabeleceram uma tradição interpretativa única. O próprio Brouwer reconhece essa conexão especial. O cubano dedicou obras a violonistas brasileiros e mantém amizades pessoais com muitos deles. Carlos Barbosa-Lima, por exemplo, gravou um álbum inteiro dedicado às Beatlerianas de Brouwer, enquanto o Brasil Guitar Duo participou da estreia mundial de O Arco e a Lira ao lado do violoncelista Yo-Yo Ma. Posteriormente, João Luiz (Brasil Guitar Duo) receberia duas obras inéditas para o álbum Os Guardiões da Magia.


Importante lembrar que, em São Paulo, existe até mesmo um Festival Internacional de Violão Leo Brouwer, o que demonstra como definitivamente sua música encontrou uma segunda casa no Brasil. Leo Brouwer não é apenas um compositor prolífico, o que já seria suficiente, ele é também um educador, maestro e pensador musical. Como regente, dirigiu algumas das principais orquestras do mundo. Como educador, formou gerações de músicos. Como pensador, suas reflexões sobre música influenciaram compositores e intérpretes em todo o mundo. Sua abordagem à composição é única e muito familiar no país de Villa-Lobos: ele não vê fronteiras entre o popular e o erudito, entre o tradicional e o moderno. Aos 86 anos, Leo Brouwer continua compondo e surpreendendo. Suas obras mais recentes, como Os Guardiões da Magia (2019) e a Sonata Cubana n. 7 (2021), sobre as quais falarei em seguida, mostram um compositor em plena forma criativa, ainda capaz de inovar e emocionar. Para pôr fim a este intróito, diria que seu legado vai muito além das notas que escreveu. Ele transformou o violão de um instrumento principalmente associado à música popular em um veículo legítimo para a expressão musical de concerto. Mostrou que é possível ser profundamente moderno sem abandonar as raízes, e que a música pode ser ao mesmo tempo intelectualmente desafiadora e emocionalmente acessível.



Fotos de Sarah Blesener


Parte 2. O álbum Os Guardiões da Magia, de João Luiz (2025)


Antes de entrarmos nas peças, vale apresentar a estrutura do álbum. Ele organiza-se de maneira simétrica e equilibrada: o Lado A reúne dois trabalhos para violão solo — a Sonata Cubana n. 7 (13'28") e Os Guardiões da Magia (5'47"), ambos interpretados por João Luiz. Já o Lado B é inteiramente ocupado por O Arco e a Lira (19'37"), sonata escrita para formação de dois violões e dois violoncelos, com participação de Gabriele Leite, Clancy Newman e Raman Ramakrishnan. A Sonata Cubana n. 7 estrutura-se a partir de três bocetos para piano — esboços sonoros que funcionam como estudos — aos quais se soma, por sugestão do João, um quarto movimento dedicado ao changüí. Cada parte da sonata tensiona uma dimensão da cultura cubana: memória popular, paisagem histórica, gesto rítmico e celebração.


O primeiro movimento, Sonera meticulosa, retoma o Boceto n. 5 (Choco) e trabalha com elementos do son tradicional — matriz rítmica de gêneros como a salsa — sem recorrer ao clichê. A escrita rítmica é marcada por variações discretas e tensões de acento que desestabilizam a expectativa do compasso. O título, aliás, é sintomático: uma sonera sim, mas meticulosa, medida, filtrada pela arquitetura harmônica. Em seguida, ouça o primeiro movimento da Sonata Cubana n. 7, em interpretação de João Luiz. Solidão do canavial, segundo movimento, deriva do Boceto n. 4 (Acosta León) e cria uma atmosfera rarefeita, quase suspensa. O lirismo aqui não é doce, é áspero — evoca a vastidão monocromática das plantações de cana, paisagem símbolo de trabalho forçado e melancolia histórica. As frases são longas, o tempo se estira, e o violão parece buscar, entre harmônicos e silêncios, uma memória que resiste à saturação da forma. Em seguida, ouça o movimento n. 2 da Sonata Cubana n. 7 na interpretação de João Luiz.


O terceiro movimento, Carlos Embale, sem você..., inspirado no Boceto n. 6 (Mendive), homenageia o grande cantor de guaguancó — subgênero da rumba cubana marcado pela percussividade e pelo canto responsorial. Aqui, Brouwer insinua dianas, os cantos de trabalho que anunciam o dia, condensando-os em células melódicas curtas, quebradas, quase sussurradas. É o movimento mais evocativo da obra: memória cantada em voz baixa, ruído de presença ausente. Aqui vale um adendo. O Boceto n. 6 carrega no título o nome do pintor cubano Manuel Mendive. Não é casual que Brouwer tenha dedicado esses três esboços, que deram origem aos três primeiros movimentos da sonata, a pintores cubanos. Em sua obra, a relação entre som e imagem é constante. Sua música pensa plasticamente: os timbres se distribuem em camadas, os ataques definem contornos, os silêncios funcionam como áreas de respiro. Choco, Acosta León e Mendive são artistas visuais de gramáticas muito distintas, e essa diferença reverbera nos movimentos correspondentes da sonata. Brouwer transcreve com som aquilo que esses pintores produzem com luz, cor e textura. Para quem deseja aprofundar essa relação entre Brouwer, imagem e invenção, recomendo o documentário Leo Choco (2014).


Por fim, Quase Changüí, composto especialmente após um pedido de João Luiz, desloca a sonata para outro plano. O changüí, ritmo fundacional do oriente cubano, entra aqui como sugestão e não como reprodução. Brouwer manipula células curtas, síncopas rotativas, motivos que giram em espiral sem cair no pastiche. É dançante, mas não dançado. A interpretação de João Luiz é exemplar por um motivo simples: seu domínio do pulso interno, a clareza nas articulações, o controle respirado das dinâmicas e a projeção cuidadosa das texturas revelam um gesto interpretativo que pensa com a obra.

João Luiz. Fotografia de Sarah Blesener


Composta em 2019 e também dedicada a João Luiz, Os Guardiões da Magia é a segunda e última obra do lado A. Trata-se de uma obra de linguagem direta, construída a partir de materiais rítmicos extraídos do universo afro-cubano. A peça é marcada pela exploração do caráter percussivo do violão, com uso recorrente de acordes de ataque seco, articulações contrastantes e variações tímbricas que simulam elementos de dança ritual. O título sugere uma atmosfera simbólica, evocando as tradições espirituais afro-cubanas onde os “guardiões” são entidades protetoras, mas o desenvolvimento formal se dá por procedimentos objetivos: repetição com variação, alternância de texturas e uso funcional do silêncio como zona de respiro.


A peça parte de gestos simples — ostinatos (padrões rítmicos repetitivos), arpejos interrompidos, ataques pontuados — e os reorganiza por sobreposição e deslocamento. A escrita é idiomática e exigente. O virtuosismo está no controle da regularidade, na capacidade de manter tensão interna e na articulação precisa dos contrastes. Há ecos sutis de formas tradicionais, como o toque, estilo flamenco de execução violonística, e a guajira, gênero musical cubano de origem camponesa, integrados sem citação direta. João Luiz, a quem a peça foi confiada desde a origem, faz uma leitura segura, concentrada e coerente com o espírito do repertório. Seu domínio rítmico e sua atenção ao detalhe sonoro sustentam a peça sem excessos. A interpretação privilegia o desenho formal e evita a espetacularização do gesto. A escuta revela uma coreografia contida: um corpo sonoro em vigília.


O lado B do álbum é inteiramente dedicado à sonata O Arco e a Lira. Composta em 2014 e estreada em Havana por João Luiz (integrando o Brasil Guitar Duo), ao lado de Yo-Yo Ma e Carlos Prieto, trata-se de uma sonata em três movimentos para dois violões e dois violoncelos. O título remete ao ensaio homônimo do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz, que reflete sobre a natureza da poesia e da criação artística, e orienta a escuta para a coexistência entre estrutura e lirismo, entre tensão e unidade formal. A escrita explora a complementaridade tímbrica entre instrumentos de ataque (violões, que produzem som através do dedilhado das cordas) e de sustentação (violoncelos, que mantêm o som através do arco), desafiando os intérpretes a preservar o equilíbrio sem comprometer a individualidade de cada linha.


O primeiro movimento, Encontro e celebração, inicia-se com cadências solo para cada instrumento — momentos em que cada músico toca sozinho, como uma apresentação individual —, a partir de materiais retirados de obras anteriores do compositor, como Tarantos (1974) e o Concerto Elegíaco (1986). Na seção conclusiva, os quatro instrumentos se articulam em uníssono rítmico sobre um motivo que remete ao son cubano. O segundo movimento, Lírica, apresenta estrutura tripartida, registro agudo proeminente nos violoncelos e um diálogo claro entre funções: os violoncelos conduzem o material melódico, enquanto os violões sustentam o plano harmônico. O terceiro, El pulso de la tierra (O pulso da terra), justapõe padrões rítmicos irregulares, articulações contrastantes e zonas de aspereza tímbrica. A concepção rítmica do movimento dialoga diretamente com o pensamento de Octavio Paz, segundo o qual o ritmo, mais do que medida, é forma de visão.


João Luiz, Gabriele Leite, Clancy Newman e Raman Ramakrishnan formam um conjunto coeso, atento ao caráter não convencional da formação e ao nível de exigência técnica da obra. As texturas são claramente organizadas, os ataques controlados e a dinâmica construída por planos sobrepostos, não por contrastes abruptos. O quarteto opta por uma leitura de contorno preciso, sem perder o caráter ritual e discursivo do material. No conjunto do álbum, O Arco e a Lira ocupa lugar central: pela escala da formação, pela densidade formal e pelo modo como sintetiza elementos presentes nas demais peças — a evocação de tradições afro-cubanas, a fragmentação melódica, o rigor estrutural e o compromisso expressivo.


Por fim, diria que Os Guardiões da Magia, além de um belíssimo trabalho, é um documento importante da fase final de um dos maiores compositores vivos para violão, interpretado por um de seus interlocutores mais atentos. As três obras reunidas no álbum pertencem a um mesmo arco criativo: uma escrita em estado de domínio, na qual Brouwer combina síntese formal, repertório cultural e sofisticação rítmica com uma economia de meios que jamais empobrece a expressividade.


João Luiz não cede à tentação de uma leitura exuberante ou ilustrativa. Seu foco está na arquitetura — na precisão tímbrica, no encadeamento formal, no trabalho fino de planos e articulações. Mas isso não significa neutralidade. Ao contrário, sua interpretação acentua os contrastes internos das obras, especialmente nos jogos de dinâmica e ritmo. Há momentos em que a escuta precisa ser quase microscópica, para captar os mínimos deslocamentos, os vazios tensionados, os silêncios cheios de forma. Em outros, a massa sonora se adensa, cresce com intensidade controlada e desloca o ouvinte pela força da vibração acumulada. O resultado é um equilíbrio raro entre rigor técnico, clareza formal e densidade poética.

 
 
 

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